domingo, 19 de outubro de 2008

Ikkagetsu!

[Um mês, ikkagetsu, um mês inteirinho já passou desde que aterrei em terras nipónicas, e apesar de algumas batalhas épicas, as coisas estão a compor-se. Um bocadinho de cada vez... Hoje foi um dia simpático e pacato, de ficar em casa e estudar e relaxar. As coisas vão ficando mais agradáveis à medida que o tempo passa, ainda que as saudades aumentem exponencialmente.]
Esta é a história de um dragão serpenteante chamado Saikyo. O Saikyo é um dragão prateado, daqueles compridos que se vêem nos filmes orientais, e nas festas do Ano Novo Chinês. Sabem quais são. Aqueles que parecem serpentes gigantes, com o corpo coberto de gigantes e duras escamas prateadas, e com uns bigodes ondulantes que vão ondulando ao lado do corpo enquanto o dragão voa veloz cortando os ares.
Pois é, o Saikyo é um dragão que vive num sítio algo controverso. Não que ele tenha qualquer coisa contra o sítio onde vive, na verdade parece-lhe um local interessante, de contrastes, em que modernidade e tradição se conjugam de forma realmente homogénea. Mas, há um grande problema na vida do Saikyo, um que faz com que a sua vida se torne mais dura do que o que ele alguma vez esperara.
Há muitos anos atrás, neste local onde o Saikyo habita, uma grande população de bolas que se movimentam sozinhas, e com vontade própria, estabeleceu o seu território, e durante muito tempo só essas bolas e alguns outros animais habitavam o sítio e viviam em harmonia com o meio em redor. Mas um dia, um aventureiro bola, partiu à descoberta de novos mundos, e nas suas viagens encontrou um lugar mágico no cume de uma grande montanha de onde saía muito fumo. O que o intrépido aventureiro encontrou foi um pequeno ovo dourado, lindo e brilhante, reluzindo à luz do sol da manhã. Ora, o aventureiro não pudera resistir a tamanho tesouro, pelo que o trazia consigo quando regressara ao seu território. O ovo demorou muito tempo a mostrar que criatura havia no seu interior, mas um dia chocou. E qual não foi o espanto das bolas quando viram na sua frente uma pequena serpente alada, a voar em redor das suas cabeças. De início todos achavam imensa piada ao pequeno animal alado que voava sem asas. Mas com o tempo, a pequena serpente transformou-se num gigantesco e majestoso dragão, e isso começou a perturbar as bolas, que temiam que o dragão as comesse e ficasse com todo o seu território. Não podia estar mais enganadas aquelas bolinhas tontas! O Dragão mostrava a todas as bolas um respeito inabalável, e tão prestável procurava ser que um dia ofereceu os seus serviços à comunidade das bolas. O serviço que o dragão começou a fazer, e aquele que o Saikyo faz também, foi o de transportar as bolas de um lado para o outro no seu território. Este transporte das bolas é exactamente o problema que preocupa o nosso protagonista, como já pude observar muitas vezes, e como me foi dito uma vez pelo próprio Saikyo, num momento em que nos encontravamos mais sós.
Todas as manhãs, o pobre Saikyo vem pelo caminho indicado pelas bolas, e quando chega a uma concentração de bolas, então ele pára e abre os seus grandes poros (sim, porque o Saikyo é gigante, e as bolas, ainda que muitas, são minúsculas comparativamente!), e deixa entrar as bolas que aí se encontram, transportando-as até um novo ponto de concentração, onde algumas saiem e outras entram. A viagem em si é bastante agradável, e a possibilidade de andar sempre de um lado para o outro foi algo que atraiu o Saikyo no início. O problema é, contou-me o simpático dragão, o falta de respeito das bolas na entrada e saída dos seus poros.
" - Eles não entendem como é doloroso para mim abrir os meus poros e deixá-los entrar. - começou ele - Pior, transportá-los a todos enquanto tento voar o mais depressa que posso não é nada fácil. Mas e eles têm algum respeito por mim?Não. Quando estou a fechar os meus poros (algo que é quase impossível de fazer porque todas as bolas querem ir ao mesmo tempo, e por isso apertam-se, espezinham-se, empurram-se...tudo para que possa caber ainda mais uma!), algumas bolas vêem que estou a fechar e lançam-se em voo contra as demais bolas, correndo o risco de ficarem trilhadas nos meus poros a fechar. E eu que tenho sempre medo de os aleijar... Depois, mais apertados que uma lata de sardinhas em conserva com o dobro da dose normal, na mesma embalagem, seguimos viagem, e o meu corpo já quase não consegue levantar tão bem como o faria com menos bolas. Quando chegamos à concentração seguinte é com um alívio enorme que abro os poros, e uma imensidão de bolas sai do meu corpo. Mas, novamente, não saiem calmamente. Não! Estas bolas estão sempre com imensa pressa, acotovelam-se, e se for preciso passam até por cima das outras só para poderem sair dos meus poros mais depressa. "
Sim, realmente Saikyo, consigo entender bem o teu grande problema. Há algum tempo que cheguei ao território das bolas, e aqui procuro ir vivendo e aprendendo mais sobre elas. Mas existem coisas que não dá para perceber. Tão íntegros e respeitadores por um lado, e tão pouco respeitadores do espaço individual de cada um nos dragões públicos. A verdade é que, tal como o Saikyo, também eu acho que as bolas têm atitudes que não considero as mais apropriadas. Mas, assim como o dragão prateado, lá continuo a minha batalha do dia a dia. Um poro de cada vez; uma concentração de cada vez...

domingo, 12 de outubro de 2008

Adaptação

A data aproxima-se. Em breve vou olhar para o calendário e ver que um mês já passou desde que cheguei ao Japão.
As aulas já começaram e mantêm-me bastante ocupada, ou não fossem as toneladas de trabalhos de casa, e os múltiplos testes de Japonês que se sucedem dia sim, dia não. As aulas de mestrado também não são propriamente pouco trabalhosas, antes pelo contrário, mas pelo menos nessas consigo ter a satisfação de participar activamente nelas, isto porque, primeiro são em Inglês, pelo que não tenho problemas em perceber, e segundo porque focam matérias e temas, que não só são extremamente aliciantes para mim, como também já estudei alguns deles, e agora limito-me a expandir e repensar o conhecimento que já possuía.
Para além das aulas, decidira já em Portugal, que enquanto aqui estivesse, iria procurar aprender uma arte marcial. A escolhida foi Shorinji Kempo. Shorinji Kempo é uma arte marcial de auto-defesa própria do Japão. Quase todos os membros, à excessão, primeiro de três, e agora de quatro forasteiros que decidiram começar a aprender, são Japoneses. Somos os quatro mosqueteiros! Facilmente reconhecíveis pelas nossas feições estranhas - olhos mais arredondados e de cores variadas, cabelos mais claros e mais volumosos - como pelas roupas que usamos e que, claro, não enquadram com os demais que usam o "dogi" tradicional desta arte. Mas, a partir da próxima semana só as feições nos distinguirão, porque devem chegar os nossos 'dogi' com o nosso nome escrito em Katakana. Mal posso esperar. Enfim, comecei há uma semana, fez ontem exactamente, e consigo ver melhorias na forma como me mexo e reajo a situações de simulação de combate. Estou extremamente entusiasmada, e quero melhorar tanto quanto possível. Na verdade, nós, os Quatro, estamos todos empenhados, e a entre-ajuda é uma boa forma de avançar.
Ultimamente tenho estudado bastantes assuntos diferentes, e tenho sentido que muito do que estudo me ajuda a compreender melhor onde me encontro, como vivo esta experiência, e sobretudo a interpretar e a direccionar aquilo que sinto.
Estou a viver um período ainda não perfeito. Estou numa espécie de limbo que dá pelo nome de Culture Stress. Quando se cai de paraquedas numa nova cultura, sente-se normalmente um choque, ou Culture Shock, caracterizado pela compreensão da diferença entre as culturas de origem e de chegada. Isso foi o que eu passei no primeiro dia aqui, e que foi uma coisa, não só muito nova para mim (uma vez que não me lembro de a ter sentido, pelo menos tão intensamente, em Inglaterra), como muito difícil de aceitar que estivesse a passar por ela. Eu, que já pesquisara tanto sobre o Japão, que sonho com este país há anos, que procuro aprender sempre mais e mais... Sim, mas saber algo e ser capaz de lidar com esse algo são duas coisas distintas. De alguma forma, esse choque foi "ultrapassado". A razão das minhas aspas é que, na verdade, ele foi meramente recalcado, e permanece activo de forma subtil, mas agora mais profunda e mais difícil de ultrapassar. Para além do Culture Shock, a diferença linguística pode ter consequências devastadoras nas tentativas de adaptação a uma nova cultura. Dia após dia, debato-me com a realidade de que existem muros gigantes em torno das minhas tentativas de comunicar em Japonês. De vez em quando lá retiro um outro tijolo, mas milhões de outros tijolos haverá ainda a retirar. Os meus progressos estão a ser lentos, mas espero que em breve consiga notar diferenças. Aliando todos estes factores, mais o inferno que é a circulação de pessoas nesta cidade (aos magotes em todos os lados; em autenticas lutas pela sobrevivência nos comboios de manhã, à tarde e à noite - em que respirar é uma tarefa hercúlia, e em que ter um cm cúbico de espaço é um oasis no meio do deserto), explica-se o limbo em que me encontro. Tenho reflectido muito sobre o que estou a passar, consigo plenamente avaliar esta situação, assim como os eventuais sentimentos de homesickness que vão ondulando no meu espírito, e para já não creio precisar de ajuda a sério. O simples facto de estar consciente desta realidade, e de saber o porquê dela existir, ajuda o meu cérebro a interpretá-la e fomentar soluções para a resolver. Apesar disso, é um processo que vai ter de se ir desenvolvendo.
Para já continuo a navegar por mares pejados de monstros marinhos gigantes e de criaturas míticas que ainda temo, mas que começam a encolher um pouquinho de cada vez. E qualquer dia, vou conseguir ultrapassar o meu próprio Adamastor...
"Mais ia por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando, alçado,
disse eu: - Que és tu? Que esse estupendo
Corpo certo me tem maravilhado!
Lusíadas, Canto V, estrofe 49.
“The tragedy of it is that nobody sees the look of desperation on my face. Thousands and thousands of us, and we're passing one another without a look of recognition.” - Henry Miller

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Verdes campos

Fiz uma pequena viagem de dois dias até Kanazawa, a terra da minha amiga Misato. Nesta viagem fui conhecer uma escola básica Japonesa na qual o pai dela dá aulas e é vice-presidente.
Partimos na segunda-feira, dia 29 de Setembro, no shinkansen (comboio rápido Japonês, também apelidado pelo povo Brasileiro de "trem bala"), pelas 15h, saindo da estação de Tóquio, a maior e principal estação da cidade, e onde nunca tinha estado até então (é realmente grande, e circular pelos labirínticos caminhos cheios de pequenas lojinhas de comidas e bebidas, apinhados de gente que anda e corre de encontro às linhas dos comboios e metros, é realmente algo que nos faz sentir pequenininhos, ou, pelo menos a mim faz!). A viagem de shinkansen tornou-se para mim mais do que uma simples viagem de comboio (se bem que, mesmo aquelas que faço em Portugal, se tornam especiais porque me deixo absorver pela paisagem e me enriqueço por poder contemplá-la). Mas esta viagem foi realmente surpreendente para mim.
Já há largos anos que sonho com o Japão, quem me conhece assim há tanto tempo sabe-o bem, mas, vir para Tóquio não era exactamente o que eu tinha em mente. Não me intrepretem mal, Tóquio é incrível, mas considero-me uma 'small town girl', e o meu sonho Japonês era um mais tradicional e natural, se é que me faço entender. O que eu amo acima de tudo no Japão é a parte tradicional das pequenas aldeias em pleno contacto com a natureza; as grandes montanhas cobertas de florestas densas, e em que se escondem mosteiros recônditos; enfim, um Japão mais natural. Foi para este Japão, o do meu sonho nipónico, que este comboio bala me transportou. Mesmo a morrer de cansaço, e a debater-me com alguma sonolência, resisti adormecer até o sol se pôr no horizonte. Fui transportada para um mundo mágico de magníficas planícies de campos cultivados, com arrozais a perder de vista, rodeadas de montanhas imponentes e verdejantes; as colinas cheias de árvores frondosas e de florestas de bambus, onde se poderiam imaginar combates épicos de samurais a lutar pelos seus daimyos (os senhores feudais que os empregavam, e que foram importantes figuras no contexto político Japonês entre os séc.s X e XIX). Olhando a paisagem, admirando cada pormenor de verde e luz nos seus imensos matizes, mudando ainda que muito rapidamente, dada a grande velocidade da viagem, foi como ser transportada para um sonho de natureza rural, que me pareceu um oxímoro poder existir em simultâneo com a loucura industrial-tecnológica de Tóquio. Vislumbrei o meu sonho escassamente nesta viagem de Shinkansen, mal eu sabia que algo maior me aguardava.
Chegadas a Kanazawa, que infelizmente não pude conhecer muito, e depois de um noite de descanso merecido, a Misato e eu acordámos às 5.30h, isto porque a viagem até à escola demoraria mais de uma hora de carro. Seguimos com o pai dela, pelas ruas de Kanazawa, e depois fomos apanhar as estradas principais para fora da cidade. Depois de algum tempo a circular entre cidades que se foram tornando progressivamente mais pequenas, com menos prédios, e mais moradias, algumas já bem tradicionais, começámos a chegar à parte da viagem que me arrebataria completamente. As montanhas aproximaram-se rapidamente e, de repente, um longo túnel através da montanha foi como uma porta mágica. Abriu-se um céu azul e luminoso de sol nascente, que deu a conhecer as gigantescas montanhas cobertas de verdes magotes de árvores, de vários feitios e tamanhos, com todos os tons de verde imagináveis. De quando em quando rompendo a verdura, lá se podia perceber uma qualquer construção típica, um pequeno templo, um cemitério, quem sabe se a casa de algum senhor antigo. Apareceram também planícies cobertas de culturas agrícolas e de flores, com os carreirinhos bem alinhados, por onde os pés conhecedores de agricultores circulam, trabalhando a terra pelo seu sustento. Caminhos de montanha por onde meninas tradicionais, de quimonos pintados anseiam passear para admirar as flores e as mudanças outonais das árvores - um autêntico quadro de Kawabata (nobel Japonês de Literatura) pintou-se diante dos meus olhos, e não tenho palavras para dizer o quanto isso me marcou. Algumas vezes, a estrada circulava junto de grandes falésias, na encosta da montanha, e em baixo podiam ver-se riachos cravados de pedras, caindo depois em cascatas pelas encostas abaixo. Um universo de paisagens provenientes do cinema, da literatura e também do anime desenharam-se naturalmente na minha frente, e sendo verdade que uma imagem vale mais que mil palavras, a verdade é que não consigo imaginar que mil palavras usar para descrever aquilo que vi, senti, pensei, exprimi. Tanta coisa é assim, este blogue é nada mais do que uma tentiva frustrada desde o início de tentar combater essa inevitabilidade. Nunca poderei exprimir tudo aquilo que vivo aqui, mas espero poder exprimir algo que possa ter algum significado para alguém para além de mim.
"Verdes são os campos,
De cor do limão,
Assim são os olhos
do meu coração."
Camões